INTRODUÇÃOO Departamento de Pediatria do Centro de Tratamento e Pesquisa do Hospital A C Camargo, em São Paulo, é o mais antigo do país e por tal motivo, podemos encontrar pacientes que foram tratados em 1953 e, que, atualmente encontram-se fora de tratamento. Com o intuito de avaliar as possíveis sequelas e efeitos tardios que pudessem interferir na qualidade de vidas desses sujeitos, criou-se o grupo multidisciplinar GEPETTO (Grupo de Estudos Pediátricos sobre os Efeitos Tardios do tratamento Oncológico) que avalia pacientes fora de tratamento oncológico, no mínimo há 8 anos. Alguns estudos deste grupo foram publicados e descreveram sequelas cardíacas (1), frequência de sequelas por doenças estudadas (2) e as sequelas dento-faciais (3).
Uma das possíveis sequelas do tratamento oncológico é a ototoxicidade que leva a uma perda auditiva neurossensorial bilateral, prejudicando principalmente as frequências agudas e podendo acometer também as frequências graves (4,5,6,7).
Perder a audição significa perder uma importante forma de contato com o mundo e com nossos semelhantes. Apesar de existirem diferentes graus de perdas auditivas, qualquer impedimento na condução do som ao sistema nervoso auditivo significa perda do conteúdo da mensagem. Tal prejuízo é maior nas crianças por estarem em fase de desenvolvimento, podendo interferir na aquisição de linguagem.
A deficiência auditiva induzida pelo uso de ototóxicos é na maioria das vezes subestimada. Apesar de apresentar perda auditiva, os pacientes somente relatam queixa em determinadas situações, como por exemplo em ambientes ruidosos, ou referem perder ou não compreender apenas parte da mensagem, o que leva aos familiares a não acreditarem na presença da perda auditiva. A perda de informação acústica diminui a probabilidade de se entender a fala, pois o comprometimento das frequências altas torna difícil a percepção das consoantes (8).
Isso associado ao tratamento global das neoplasias pode contribuir para o isolamento dos pacientes com câncer (9).
O objetivo desse trabalho é investigar quais as frequências audiométricas acometidas são responsáveis pela queixa auditiva em pacientes tratados de câncer na infância.
MÉTODONo período de 2000 a 2004, foram avaliados 200 pacientes que tiveram câncer na infância, tratados no período de 1961-1996, e que se encontravam fora de tratamento oncológico, no mínimo há 8 anos. Destes 104 (52%) eram do sexo masculino e 96 (48%) do sexo feminino. A idade média ao diagnóstico foi de 6,21 ± 4,71 anos (média ± DP) (variação: 0 - 18,6) e na avaliação era 21,7 ± 6,8 anos (variação: 8 - 56). Destes, 51 pacientes realizaram tratamentos que não incluíam radioterapia em região de cabeça e pescoço nem quimioterapia com uso de cisplatina (CDDP), 64 pacientes foram submetidos à quimioterapia com CDDP e não realizaram radioterapia em região de cabeça e pescoço, 75 pacientes foram submetidos a tratamento radioterápico em região de cabeça e pescoço sem esquema de quimioterapia com cisplatina e 10 pacientes submetidos tanto a radioterapia (Rxt) em região de cabeça e pescoço como a quimioterapia com cisplatina.
Este estudo foi aprovado e revisado pela Comissão de Ética e Pesquisa(CEP) protocolo número 549/03 do Hospital ACCamargo. Os pacientes elegíveis ou seu responsável foram consultados sobre a possibilidade de participar assinando um termo de consentimento livre e esclarecido.
Os pacientes foram submetidos a uma anamnese no ambulatório de Pediatria com o objetivo de investigar a presença de queixa auditiva e encaminhados para avaliação auditiva no serviço de Audiologia, independentemente da existência ou não da queixa auditiva. O questionário envolvia queixas audiológicas e otológicas e foi considerada como presença de queixa auditiva a resposta afirmativa para a questão: Você acha que ouve bem, assim como a mais uma questão referente à acuidade auditiva ou zumbido. A meatoscopia foi realizada antes do exame e se o paciente apresentasse cerúmen ou qualquer suspeita e/ou obstrução que impedisse a realização do teste, era encaminhado para o otorrinolaringologista antes da avaliação.
A audiometria tonal limiar foi realizada com audiômetro Madsen Orbiter 922 e fones TDH39. A perda auditiva foi considerada quando os limiares excederam 20dB NA em qualquer frequência entre 0,25 e 8kHZ (SCHULTZ et al. ) (10)
Para verificar a associação entre as variáveis queixa auditiva e a perda auditiva, foi empregado o teste exato de Fisher. Para todos os testes estatísticos, foi estabelecido um erro a=5%, isto é, os resultados foram considerados estatisticamente significativos quando p<0,05.
Os pacientes foram agrupados conforme o resultado da audiometria tonal e a presença ou não de queixa auditiva. Foram divididos em pacientes com audição normal, perda auditiva em 8kHz, perda auditiva 6-8kHz, perda auditiva 4-8kHz,perda auditiva 2-8kHz e perda auditiva <1-8kHz
RESULTADOSA perda auditiva foi encontrada em ambas as orelhas. em todos os grupos que foram submetidos a tratamento de risco para audição, conforme mostra o Gráfico 1.
A queixa auditiva esteve presente em 44 pacientes (22%) da amostra, sendo que 34 pacientes com queixa apresentavam perda auditiva. Observamos uma relação estatisticamente significante entre a presença de perda auditiva e queixa auditiva (Tabela 1). Dos pacientes com queixa e sem perda auditiva, quatro eram do grupo sem tratamento de risco, quatro eram do grupo com tratamento com cisplatina, e dois foram tratados somente com radioterapia.
As perdas auditivas foram separadas por frequência audiométrica, para observarmos em qual frequência a perda tem relação estatisticamente significante com a queixa (Tabela 2).
Pudemos observar que quanto maior o número de frequências acometidas pela presença de perda auditiva, maior o aparecimento da queixa auditiva mostrando uma relação estatisticamente significante entre perda auditiva a partir de 4kHz e queixa auditiva (p=0.001) (Tabelas 3 a 7).
Grafico 1. Configuração audiométrica média dos limiares auditivos segundo o tipo de tratamento. OD: orelha direita OE: orelha esquerda.
DISCUSSÃOA perda auditiva induzida pelo uso de ototóxicos tem sido estudada, sobretudo no tratamento oncológico (4,5,6,7,11,12). Atualmente com o aumento das taxas de sobrevida e com a crescente preocupação com a qualidade de vida dos pacientes, faz-se importante não só a monitorização auditiva, mas, sobretudo a reabilitação auditiva e a compreensão das reais necessidades auditivas de cada indivíduo. A característica da perda é descrita como bilateral, descendente e simétrica (7,11). De fato, as perdas auditivas descendentes implicam em dificuldades de percepção dos fonemas agudos da fala (8), colocando esses pacientes em risco para as dificuldades de comunicação, sobretudo em ambientes ruidosos.
Embora tenhamos encontrado 10 pacientes (5%) com audição normal com presença de queixa, lembramos que o zumbido foi considerado como queixa e também pode estar presente em indivíduos normo-ouvintes (13,14). De fato, TEIXEIRA et al.(15) também encontraram em sua população de 50 indivíduos idosos, 3 idosos (6%) com audição normal e com queixa.
Em nosso estudo, observamos que a maioria dos pacientes com perda auditiva também possuem queixas auditivas, e que quanto mais frequências encontram-se acometidas, maior a ocorrência da queixa auditiva. AMORIM et al. (16) encontraram queixas auditivas em seu estudo com 30 músicos. Os autores não especificaram o envolvimento auditivo dos indivíduos com queixa, entretanto ressaltaram que as queixas mais frequentes foram em relação à presença de zumbido e a dificuldade de compreender em ambientes ruidosos.
Em estudos envolvendo a queixa auditiva na população falante do português, CALVITI et al (17), TEIXEIRA et al. (15) e SAMELLI et al.(18) estudaram a relação da perda auditiva e queixa auditiva, porém não estudaram a relação da queixa auditiva com as frequências acometidas e sim com a média das frequências e o grau da perda auditiva. O risco de identificarmos as perdas por média, sejam elas englobando 500 a 2kHz ou 500 a 4kHz, ou inclusive incluindo 6kHz, é de que na média perdem-se os valores individuais das frequências que podem fazer a diferença. CALVITI et al. (17) estudaram 71 idosos, avaliando a relação entre a percepção do handicap e as médias audiométricas. Encontraram presença de percepção de handicap em 24 idosos (58,5%) com perda auditiva usando a média tonal de 500 a 2kHz, e não encontraram variação significativa quando incluíram na média as frequências de 4k e 6kHz. TEIXEIRA et al. (15) encontraram somente 10 idosos (20%) com perda auditiva e com queixa, enquanto 23 pacientes (46%) com perda não apresentaram queixa. Essa relação pode ser justificada pelo fato de que a perda auditiva nos idosos, embora bilateral e simétrica, é de instalação insidiosa, permitindo a adaptação em sua rotina diária de menor exigência auditiva. Em nossa amostra é de população mais jovem, com instalação durante a infância, com demanda auditiva maior em relação aos idosos.
Atualmente, existem várias maneiras de se classificar as perdas auditivas, no entanto todas elas se baseiam na média dos limiares tonais de 500, 1000 e 2000Hz. Isto não se mostrou eficaz na população oncológica (10), pois as perdas auditivas por ototoxicidade começam nas frequências mais agudas e o presente estudo demonstrou que ao atingirem 4000Hz, começam a surgir às queixas auditivas. Neste sentido, somente levar em conta perdas nas frequências de 500, 1000 e 2000, não é suficiente para identificar a presença de perda com impacto na comunicação ou queixa auditiva.
SAMELLI et al. (18) estudaram a possibilidade de usar o levantamento de queixas como método de triagem em idosos. Estudaram 185 idosos que responderam ao questionário de levantamento das queixas, que foi comple-mentado pela avaliação audiológica em 91 deles. Entre os idosos que realizaram avaliação audiológica, encontraram 40 indivíduos (44%) sem queixa auditiva e com perdas desde leves a profundas. CALVITI et al. (17) encontraram 17 idosos (24%) entre os 71 estudados com perdas auditivas e sem queixa. Em nosso estudo, entre os pacientes com perda, encontramos 41 (21%) que não apresentaram queixa. Destes, 34 pacientes (33%) tinham perda apenas em 8kHz ou em 6k e 8kHz (Tabela 2). Esse fato já tinha sido observado pelo nosso grupo, no trabalho de LIBERMAN et al. (19) no qual ressaltamos que pequenas perdas podem ser assintomáticas. Ou seja, perdas auditivas isoladas em frequências altas podem ser assintomáticas, reforçando a importância da investigação audiológica em todos os pacientes oncológicos, independentemente da presença queixas auditivas.
Em nosso estudo, observamos que a presença de queixas auditivas aumentou consideravelmente quando a perda avançou para as frequências que diretamente interferem no reconhecimento de fonemas agudos, tais como as fricativas (8, 20). Foi possível identificar a frequência de 4000Hz, como estatisticamente significante (p< 0.0001) para o aparecimento de queixa auditiva, o que significa que, a partir desta frequência, o impacto e a dificuldade auditiva se impõem. Vale ressaltar que embora não tenham praticamente havido queixas nos pacientes adultos jovens com perdas auditivas em 6k e 8kHz, essas perdas podem ter consequências importantes na população pediátrica em desenvolvimento de fala e linguagem.
Este estudo é de suma importância no paciente oncológico pois quando a frequência de 4kHz está acometida podemos sinalizar para o médico oncologista que a perda auditiva a partir daquele momento terá impacto importante na vida daquele paciente e o médico poderá usar a informação para a definição de conduta, principalmente na população pediátrica.
CONCLUSÃOQuanto maior o número de frequências acometidas maior a ocorrência de queixa auditiva, sobretudo quando as frequências da fala estão envolvidas, sendo que o acometimento de 4kHz já determina o aparecimento das queixas.
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1) Mestre em Ciências. Fonoaudiologa.
2) Doutor em Ciências dos Distúrbios da Comunicação. Fonoaudiólogo.
3) Doutor em Medicina. Oncopediatra.
Instituição: Hospital AC Camargo. São Paulo / SP - Brasil. Endereço para correspondência: Patricia Helena Pecora Liberman - Rua Antonio Prudente, 211 - São Paulo / SP - Brasil - Telefone: (+55 11) 2189-5123 - E-mail. phpliberman@gmail.com
Artigo recebido em 10 de Maio de 2011. Artigo aprovado em 21 de Agosto de 2011.